O CORPUS CHRISTI E A DOUTRINA DA TRANSUBSTANCIAĆĆO
- Prof. Gildo Gomes
- 29 de mai. de 2024
- 8 min de leitura
Corpus Christi Ć© uma expressĆ£o latina cujo significado Ć© Corpo de Cristo. Na tradição católica Ć© a festa do santĆssimo sacramento, instituĆda pelo papa Urbano IV, no ano de 1264, com o objetivo de honrar a presenƧa real de Cristo na eucaristia, conforme a teologia católica romana da transubstanciação1. A festa acontece todo ano, geralmente nos 60 dias posterior ao domingo pascoal. No site católico da Canção Nova se afirma que essa festa foi instituĆda pela igreja após uma visĆ£o da órfĆ£ de mĆ£e, Juliana de Cornillon, nascida em 1191, próximo a LiĆ©ge, na BĆ©lgica, cidade onde mulheres jĆ” se dedicavam ao culto eucarĆstico. No ano de 1258, ela diz que viu Cristo pedindo a celebração do Corpus ChristiĀ no calendĆ”rio litĆŗrgico da igreja. A monja Juliana de Cornillon teve sua primeira visĆ£o aos 16 anos e nela via āa lua no seu mais completo esplendor, com uma faixa escura que atravessava diametralmenteā2. Na interpretação a lua era a vida da igreja na terra e a faixa opaca representava a ausĆŖncia da festa de adoração ao Cristo eucarĆstico. A BĆblia diz: āNinguĆ©m se faƧa Ć”rbitro contra vós outros, pretextando humildade e culto dos anjos, baseando-se em visƵes, sem motivo algum na sua mente carnalā (Cl 2.18).

OS SACRAMENTOS
Ā A origem da palavra latina sacramento estĆ” associada ao juramento que um soldado realizava numa promessa solene diante do pavilhĆ£o do seu paĆs.Ā HĆ” igrejas pentecostais que rejeitam terminantemente o uso do termo sacramento como a Assembleia de Deus3. No inĆcio do pentecostalismo, William Seymour, usava a expressĆ£o sacramento na confissĆ£o de fĆ© do movimento na Rua Azuza4. As palavras āsacramentoā, āordenanƧaā, āritoā, e āobservĆ¢nciaā sĆ£o usadas por evangĆ©licos ao se referirem ao batismo e a ceia do Senhor. Historicamente os dois primeiros termos sĆ£o os preferidos no protestantismo. No meio batista, por exemplo, temos o uso de sacramento no Catecismo Ortodoxo (1680), e ordenanƧa na ConfissĆ£o de FĆ© Batista de 1689. Acreditamos que sacramento referindo-se ao batismo e ceia sejam melhor que ordenanƧa e por uma razĆ£o: um sacramento Ć© uma ordenanƧa, mas nem toda ordenanƧa Ć© um sacramento como no caso do casamento. Para quem diz que a palavra āsacramentoā nĆ£o consta na escritura, afirmamos que āordenanƧaā consta na BĆblia, mas nunca em referĆŖncia a ceia e ao batismo, e, portanto, ambas expressƵes sĆ£o usadas alternadamente.Ā
Os sacramentos sĆ£o ordenanƧas estabelecidas por Cristo onde elementos materiais sĆ£o usados como sinais visĆveis das promessas divinas. O protestantismo reconhece dois sacramentos na nova alianƧa: O batismo e a ceia do Senhor. Em outras palavras o sacramento Ć© um sinal visĆvel de uma graƧa invisĆvel que nĆ£o infunde salvação como acredita o catolicismo. Na verdade, sĆ£o meios de graƧa para nossa santificação e crescimento espiritual (1Co 11.16). O teólogo reformado Herman Bavink5Ā (1854-1921), estabelece trĆŖs semelhanƧas e diferenƧas entre a palavra de Deus e o sacramento. As semelhanƧas sĆ£o: Deus Ć© o autor; Cristo Ć© o conteĆŗdo e sĆ£o assimilados por fĆ©. E as diferenƧas sĆ£o as seguintes: Na necessidade,Ā a palavra Ć© indispensĆ”vel e o sacramento nĆ£o; no propósito a palavra gera e fortalece a fĆ©, o sacramento só fortalece; e na extensĆ£oĀ a palavra vai para o mundo, e o sacramento somente para a igreja de Cristo. Com isso nĆ£o desprezamos os sacramentos como os fariseus rejeitaram o batismo de JoĆ£o (Lc 7.29,30), mas os valorizamos em conformidade com o testemunho bĆblico. A palavra de Deus nos vem pelo sentido da audição; os sacramentos pelo sentido da visĆ£o, e ambos se centralizam na pessoa de Cristo, nosso salvador e Senhor.
Assim como o Deus Pai estabeleceu na antiga alianƧa dois sacramentos (circuncisĆ£o e pĆ”scoa) e nĆ£o os profetas, igualmente o Deus filho instituiu dois sacramentos na nova alianƧa (batismo e ceia), e nĆ£o os apóstolos. A igreja nĆ£o tem autoridade para estabelecer sacramentos e, sim, de celebrĆ”-los na quantidade e forma em que foram entregues pelo Senhor ao seu povo. āPois recebi do Senhor o que tambĆ©m vos entreguei: o Senhor Jesus, na noite em que foi traĆdo, tomou o pĆ£o e, tendo dado graƧas, o partiu e disse: Isto Ć© o meu corpo que Ć© dado por vós. Fazei isto em memória de mimā (1Co 11.23). Percebe-se pela escritura uma certa correspondĆŖncia entre a circuncisĆ£o e o batismo (Cl 2.11,12); assim como entre a pĆ”scoa e ceia (1Co 5.8), porĆ©m nem batismo e nem ceia sĆ£o substitutos da circuncisĆ£o e da pĆ”scoa, pois estes pertencem a nova alianƧa que Ć© superior a antiga (Jr 31.31-33; Hb 8.6-13). Dessa forma sĆ£o antibĆblicos os sete sacramentos do catolicismo: o batismo, a eucaristia, a confirmação, a penitĆŖncia, a ordenação, o casamento e a extrema-unção ou unção dos enfermos. Os sacramentos no AT e NT seriam assim:Ā
SACRAMENTOS OU ORDENANĆAS NA BĆBLIA
Sacramentos do Antigo Testamento | Sacramentos do Novo Testamento |
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A TRANSUBSTANCIAĆĆO NA HISTĆRIA
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Na igreja pós-apostólica os sacramentos do batismo e da ceia continuaram conforme as prescriƧƵes bĆblicas. Na DidaquĆŖ6, um documento do final do primeiro e inĆcio do segundo sĆ©culo, apresenta instruƧƵes sobre a celebração da ceia e do batismo. Inclusive o batismo era feito após um perĆodo de jejum o que mostra que era ministrado a pessoas adultas. Somente após o batismo era possĆvel participar da Ceia do Senhor. Todos comiam e bebiam do vinho. Na Ć©poca de Justino, o MĆ”rtir (100-167 d.C.) ele descreveu como acontecia um culto no segundo sĆ©culo: āQuando a nossa oração termina, trazem-se pĆ£o e vinho e Ć”gua, e o presidente, de modo semelhante, oferece oraƧƵes e ação de graƧas, de acordo com a sua capacidade, e as pessoas concordam, dizendo AmĆ©m. EntĆ£o se distribui a eucaristia a cada um, e cada participante naquilo pelo qual se agradeceu. E se envia uma porção disso para aqueles que estĆ£o ausentesā7. Mais na frente Agostino de Hipona (354-430) disse sobre a Ceia: āCompreendam espiritualmente o que eu disse; vocĆŖs nĆ£o comerĆ£o esse corpo que veem; nem beberĆ£o o sangue que serĆ” derramado pelos que me crucificarĆ£o [...] Embora seja necessĆ”rio celebrar isso de forma visĆvel, deve ser compreendido espiritualmenteā8.Ā Nos primeiros sĆ©culos da igreja, apesar de pais usarem a expressĆ£o sacrifĆcio para a ceia, porĆ©m nunca desenvolveram uma teologia de eucaristia católica romana. Nada de crenƧa em transubstanciação, ou seja, uma mudanƧa dos elementos, agora transformados substancialmente no corpo e no sangue de Cristo no ato da consagração pelo sacerdote como afirma a Igreja Católica Romana8.Ā
Foi na Idade MĆ©dia, no sĆ©culo 9, que irrompeu uma disputa entre dois monges de Corbie (FranƧa), acerca da presenƧa de Cristo na ceia do Senhor. De um lado Radberto que defendia a presenƧa real de Cristo na ceia; e do outro o monge Ratramo que cria na presenƧa espiritual de Cristo na ceia9. A visĆ£o de Radberto foi aceita e oficializada pela Igreja Católica, sem o apoio da Sagrada Escritura, baseada exclusivamente na autoridade da igreja. O Quarto ConcĆlio de LatrĆ£o (1215), a oficializou e o teólogo Tomas de Aquino (1225-1724) uniu a filosofia de Aristóteles com a doutrina da igreja na defesa da transubstanciação. O resultado Ć© que a partir do sĆ©culo 13, a igreja deixou de dar o cĆ”lice aos comungantes, justificando com a doutrina da concomitĆ¢ncia, segundo a qual quando o leigo recebe um elemento ele recebe o Cristo completo. PorĆ©m essa prĆ”tica era para nĆ£o profanar o sangue de Cristo, pois a igreja temia que ao servir o vinho ao leigo alguma porção corria o risco de se derramar. A doutrina da transubstanciação tirou o cĆ”lice do católico, desprezando o que Cristo estabeleceu. O padre John Huss (1370-1415), queimado na fogueira chegou a defender que as āduas espĆ©ciesā (pĆ£o e vinho) fossem distribuĆdos aos fiĆ©is. Os hussitas travaram guerras contra exĆ©rcitos católicos para ter o direito ao cĆ”lice10, dado por Cristo e negado pela igreja.Ā

OS PROTESTANTES E A EUCARISTIA SEGUNDO A BĆBLIA
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Na história protestante houve divergĆŖncias quanto ao significado das palavras āIsto Ć© o meu corpoā. Nenhum ramo do protestantismo, porĆ©m, interpretou as passagens bĆblicas referentes a instituição da ceia do Senhor como forƧadamente fez a Igreja Romana. Os protestantes creem na eucaristia. āE, tomando um cĆ”lice, rendeu graƧas e o deu a eles, dizendo: Bebei dele todosāĀ (Mt 26.27). Ação de graƧa (no gr.āeucaristiaā) significa āexpressar gratidĆ£oā, āagradecerā āser gratoā, āaceitĆ”vel a Deusā. Portanto, quando um católico indaga se cremos na eucaristia, afirmamos que sim, mas negamos a teologia da transubstanciação que afirma o mistĆ©rio do Cristo eucarĆstico. Somos contrĆ”rios a essa doutrina pelas seguintes razƵes bĆblicas:
Jesus disse: āIsto Ć© o meu corpo que Ć© partido por vós; fazei isto em memória de mimāĀ (1Co 11.24). A interpretação literalista da expressĆ£o āisto Ć© o meu corpoā Ć© o grito de guerra dos católicos na defesa da transubstanciação. Eles se esquecem que a segunda parte do texto āfazei isto em memória de mimā, deveria lembra-los que o corpo real de Cristo nĆ£o estĆ” ali, pois assim nĆ£o faria sentido algum;Ā Ā
Se na frase āisto Ć© o meu corpoā, o verbo ser (Ć©), implica numa conversĆ£o literal do corpo de Cristo no pĆ£o e do sangue de Cristo no vinho, entĆ£o as afirmaƧƵes āeu souā de Cristo no evangelho de JoĆ£o serĆ£o literais por causa do verso ser: āeu sou o pĆ£o da vidaāĀ (Jo 6.35); āeu sou a luz do mundoāĀ (Jo 8.12) e āeu sou a videiraāĀ (Jo 15.1);
No ato da instituição da ceia o āpĆ£o partidoā Ć© o corpo sacrificado de Cristo; e o āvinho derramadoā Ć© o derramamento do sangue de Cristo. Sendo assim, o pĆ£o nĆ£o poderia ter sido o corpo fĆsico de Cristo e nem o vinho ser o sangue de Cristo, pois o seu corpo ainda nĆ£o fora partido (crucificado) e seu sangue ainda nĆ£o fora derramado na cruz. EntĆ£o quando os discĆpulos comeram o pĆ£o e beberam o vinho nĆ£o foi o corpo e nem o sangue fĆsico de Cristo. E se isso nĆ£o foi para eles na instituição da Ceia, nĆ£o seria na continuação da celebração, āatĆ© que ele [Cristo] venhaā (1Co 11.26);Ā
O apóstolo Paulo apresenta o sacramento da ceia do Senhor no sentido de participação e nĆ£o de sacrifĆcio. āAcaso o cĆ”lice da bĆŖnção que abenƧoamos nĆ£o Ć© a comunhĆ£o do sangue de Cristo? Acaso o pĆ£o que partimos nĆ£o Ć© a comunhĆ£o no corpo de CristoāĀ (1Co 10.16). Ao se alimentarmos dos elementos do pĆ£o e do vinho, e nĆ£o apenas de um, participamos da comunhĆ£o com Cristo. Ć a participação na comunhĆ£o e nĆ£o de um sacrifĆcio como acontece na transubstanciação. Cristo ofereceu seu sacrifĆcio na cruz suficientemente uma Ćŗnica vez. āMas este tendo oferecido um Ćŗnico sacrifĆcio pelos pecados, assentou-se para sempre Ć direita de Deusā(Hb 10.12)11.
Os católicos dizem que o āprimeiro anĆŗncio eucarĆsticoā estĆ” no Evangelho de JoĆ£o 6.53,54: āEm verdade, em verdade vos digo: Se nĆ£o comerdes a carne do filho do homem, e nĆ£o beberdes o seu sangue, nĆ£o tereis vida em vós mesmo. Quem come a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no Ćŗltimo diaā.Ā Essa passagem nem se refere a ceia do Senhor e se fosse tornaria o sacramento salvĆfico. Nesse mesmo capĆtulo Jesus jĆ” havia dito que trabalhassem nĆ£o pela comida que perece, mas pela que permanece para a vida eterna (Jo 6.27). A carne de Cristo seria dada pelo mundo (Jo 6.51). Isso nĆ£o Ć© a ceia, embora a ceia fale disso. Comer de Cristo Ć© crer em Cristo (Jo 6.40). No diĆ”logo com a mulher samaritana Jesus disse que āquem beber da agua que eu lhe der nunca mais terĆ” sede; pelo contrĆ”rio, a Ć”gua que eu lhe der se tornarĆ” nele uma fonte de agua a jorrar para a vida eternaāĀ (Jo 3.14). Assim como Jesus nĆ£o se referia a uma Ć”gua literal, o mesmo se diz quando compara o seu corpo a um pĆ£o para se comer. No final do discurso Jesus nos previne de uma interpretação sacramental: āO EspĆrito Ć© o que dĆ” vida, a carne nĆ£o serve para nada; as palavras que vos tenho falado sĆ£o espĆrito e vidaā.Ā (Jo 6.63).Ā Ā
A festa religiosa do Corpus Christi, Ć© fundamentada numa teologia inteiramente antibĆblica, que distorceu as palavras da instituição da ceia do Senhor, eliminou a necessidade do fiel participar do vinho e incentiva a idolatria nas procissƵes com a hóstia consagrada nas ruas ou no templo quando se encurva diante do sacrĆ”rio ou tabernĆ”culo.Ā
Referências bibliogrÔficas
[1] Defesa da FĆ©, Revista do ICP, Ano 8 ā nĀŗ 55. JundiaĆ-SP, 2003.
[2] DisponĆvel em <https://formacao.cancaonova.com/igreja/historia-da-igreja/conheca-a-historia-da-festa-de-corpus-christi-para-bem-viver-esse-dia.> Acessado em 29/05/2022
[3] Declaração de Fé das Assembleias de Deus. CGADB, CPAD, Rio de Janeiro, 2018 p.122
[4] SYNAN, JR. Vinson e Charles Fox. William Seymour, a biografia. Natal: Carisma editora, 2017. p. 235
[5] BAVINK, Herman. DogmÔtica Reformada vol 4. São Paulo: Cultura Cristã, 2012 pp. 485, 486
[6] Padres Apostólicos, Coleção PatrĆstica. SĆ£o Paulo: Paulus, 1995. p. 353
[7] ALLISON, Gregg R. Teologia Histórica. São Paulo: Vida Nova, 2017. p. 761
[8] ALLISON, Gregg R. Teologia Histórica. SĆ£o Paulo: Vida Nova, 2017. p. 766Ā
[9] SCHREINER, CRAWFOR. Thomas R. e Matthew R. A Ceia do Senhor. Imprensa da FĆ©, 2021. Cap. 5Ā Ā
[10] GONZĆLEZ, Justo L. História Ilustrada do Cristianismo. SĆ£o Paulo: Vida Nova, 2011. p. 499Ā Ā Ā
[11] ALISSON, Gregg R. Teologia e PrÔtica da Igreja Católica. São Paulo: Vida Nova, 2018 p.